opinião

Kiss e meus cadernos de chamada



Este artigo originalmente foi escrito em 21 de janeiro de 2014, ou seja, quase um ano da tragédia da Boate Kiss. Tragédia, sim! Fiz o exercício de colocar os 242 nomes, um embaixo do outro e cheguei a dez páginas em folha A4. Então coloquei um nome ao lado do outro, reduzi ao tamanho 10, letra times, sem espaçamento e cheguei a três páginas. O texto relata um ainda jovem professor (que este ano completa 10 anos de docência universitária), aflito com todos os acontecimentos que marcam Santa Maria, da forma mais negativa possível, em nível local, regional, nacional e internacional:

"Doze meses nunca demoraram tanto, 365 dias foram intermináveis! Não pretendo neste breve artigo fazer críticas. Aquela manhã de 27 de janeiro ficou e ficará marcada na vida de muita gente, inclusive na minha.

Da sacada de meu prédio, presenciei ambulâncias, carros de polícia, bombeiros e outros carros em direção ao Centro Desportivo Municipal. Minha esposa síndica, atendia telefones do Estado inteiro (pais ligando para saber de seus filhos), até que começamos a bater de porta em porta para saber quem estava em casa. Felizmente, em nosso condomínio não perdemos ninguém. Porém, nosso luto permaneceu na forma de um pano preto na entrada prédio. Então, tive a mais dura tarefa que está iniciando. Desta vez, não fui pegar meus cadernos de chamada para ver quem foi aprovado no mestrado, nos concursos ou nos programas de trainee. Desta vez, peguei meus cadernos de chamada para ver quantos alunos tinham falecido na Boate Kiss. Eram 9h, quando tive a confirmação que tinha perdido um colega de segundo grau (do colégio Sant'Anna). Jogamos futsal, apresentamos teatro, fizemos excursões. No decorrer daquele fatídico dia, tive muito a chorar, aliás, perdi alunos. Um aluno das Ciências Econômicas, com qual jogava futebol, que discutia com um entusiasmo de poucos. Seu jeitão "meio sério" até podia "meter" medo, mas, na verdade, era um nato debochado. No curso de Sistemas da Informação, tinha uma menina que sentava no fundo, que era notada pelo bom humor. No curso de Direito, um menino sério, sempre com seu computador pessoal, perguntava, às vezes ao extremo, mas, aqui, confesso que instigava a cada aula.

O mês de março foi tão difícil! Trabalhar com os primeiros semestres, tendo alunos de 16, 17, 18 anos, era conviver com alunos com perfil dos jovens que faleceram na Kiss, seus olhares distantes, as discussões e polêmicas pareciam não ser as mesmas. Alguns meses depois, outra perda. Aluna esta que se destacava não somente pela beleza, personalidade e simpatia. Nunca foi tão denso dar e transmitir conhecimento. Foram mais alunos, inúmeros sonhos e respostas de "presente, professor"! Relatei aqui apenas aqueles com quem mais convivi.

O que podemos aprender com esta tragédia é respeitar a dor do próximo, respeitar opiniões divergentes, credos distintos. Os leitores devem estar se perguntando por que não escrevi antes, no início do ano? A resposta é simples! Somente agora, em dezembro, tive coragem de colocar fora meus cadernos de chamada!"

Passaram-se cinco longos anos. A justiça dos homens, cada vez mais desacreditada, desumana, desqualificada. A justiça divina, acolhedora, sensata e rápida. Dedico este texto aos 242 mortos na tragédia da Boate Kiss, aos sobreviventes que ainda lutam por tratamento. Aos pais. A todos que se mobilizaram para salvar, acolher e lutar pela vida do próximo. Kiss, para jamais esquecer.

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